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Micróglias: Guardiãs do Cérebro e Suas Complexas Dualidades

As células que compõem o sistema nervoso central, historicamente vistas como meras coadjuvantes, começaram a ganhar um papel de destaque no entendimento de várias condições neurológicas e psiquiátricas. Entre essas células, as micróglias se tornaram foco de estudos devido à sua natureza dual. Embora sejam fundamentais para a proteção do cérebro, também podem causar danos quando descontroladas.

As micróglias representam cerca de 10% de todas as células cerebrais e são pequenas, mas poderosas. Elas possuem uma morfologia única, com um corpo central oval e extensões ramificadas, que estão em constante movimento, monitorando o ambiente cerebral. De acordo com o neurocientista Paolo d’Errico, da Universidade de Freiburg, essas células estão sempre “vigilantes”, detectando sinais de danos ou infecções e agindo rapidamente para proteger o cérebro. Em condições normais, as micróglias são responsáveis por funções vitais, como a remoção de detritos, a reparação de lesões e a manutenção da mielina, a camada protetora dos neurônios que é crucial para a condução eficiente dos impulsos nervosos.

Entretanto, quando algo sai errado, as micróglias podem se transformar em vilãs, desencadeando uma resposta inflamatória exacerbada que, em vez de proteger, pode destruir o tecido cerebral. Linda Watkins, neurocientista da Universidade do Colorado, descreve essa dualidade das micróglias como um “lado bom e um lado ruim”. Em condições normais, elas protegem o cérebro de infecções e outros danos. No entanto, quando são superestimuladas, entram em um estado de alerta permanente, liberando substâncias inflamatórias, conhecidas como citocinas, que podem danificar neurônios saudáveis.

O que faz com que essas células passem do papel de guardiãs para o de vilãs? A resposta pode estar nas doenças e infecções que o cérebro enfrenta ao longo da vida. Estudos mostram que em condições como a doença de Alzheimer, vício, ansiedade, covid longa, e até mesmo a dor crônica, as micróglias podem ser acionadas de forma errada, permanecendo em um estado de hiperatividade mesmo após a ameaça inicial ter desaparecido. Isso cria um ambiente inflamatório constante no cérebro, que, com o tempo, pode levar à perda de neurônios e ao declínio cognitivo.

Micróglias e o Alzheimer: O dilema da inflamação crônica
Um dos maiores desafios no estudo do Alzheimer é entender por que algumas regiões do cérebro acumulam placas amiloides, as proteínas que se aglomeram e são vistas como as principais causadoras da doença. A micróglia desempenha um papel crucial na remoção dessas placas em estágios iniciais. No entanto, quando o processo de remoção se torna contínuo, as micróglias podem se rebelar. Elas começam a liberar sinais inflamatórios em excesso, o que cria um ambiente tóxico para os neurônios. Em vez de proteger, essas células acabam matando neurônios ou “podando” sinapses em excesso, interrompendo a comunicação entre as células nervosas e contribuindo para a perda de memória e confusão mental que caracterizam o Alzheimer.

O acúmulo de placas amiloides parece ser um dos principais desencadeadores da superativação microglial. Conforme a doença avança, essas células contribuem para espalhar a proteína tóxica pelo cérebro, piorando o quadro clínico. De acordo com um estudo de 2021 liderado por Paolo d’Errico, a micróglia, após internalizar a proteína amiloide, pode transportá-la para outras regiões do cérebro, ampliando a área afetada pela inflamação.

O papel das micróglias no vício e na dor crônica
Estudos recentes sugerem que as micróglias também têm um papel importante em distúrbios como o vício e a dor crônica. Tradicionalmente, o vício tem sido atribuído a desequilíbrios nos níveis de dopamina, o neurotransmissor associado ao prazer. No entanto, Watkins propõe que as micróglias também estão envolvidas no processo de reforço da dependência química. Quando uma droga como a cocaína ou os opiáceos é ingerida, as micróglias veem a substância como uma invasora estranha. Elas liberam citocinas inflamatórias que, por sua vez, estimulam ainda mais os neurônios responsáveis pelo prazer, reforçando os caminhos neurais que perpetuam o comportamento aditivo.

Além do vício, a dor crônica, definida como dor que persiste por mais de 12 semanas, também pode estar ligada à ativação exacerbada das micróglias. Quando a micróglia é ativada após uma lesão, ela libera substâncias inflamatórias que aumentam a sensibilidade dos neurônios da dor, perpetuando a sensação de desconforto muito além do período esperado de cura. De acordo com pesquisas, ao bloquear a ativação das micróglias, pode-se interromper o ciclo da dor crônica.

Micróglias, cirurgias e o envelhecimento cerebral
Outro fenômeno intrigante relacionado às micróglias é a sua conexão com o envelhecimento e o declínio cognitivo após cirurgias ou infecções. À medida que envelhecemos, as micróglias ficam em um estado de alerta constante, prontas para reagir a qualquer ameaça. Após uma cirurgia ou infecção, especialmente em pacientes idosos, as micróglias podem entrar em um estado de hiperativação que acelera o declínio cognitivo.

Esse fenômeno, conhecido como “preparação microglial”, torna os idosos mais vulneráveis a danos cerebrais após cirurgias. O uso de opioides, que é comum no pós-operatório, apenas agrava o problema, ativando ainda mais as micróglias e desencadeando uma resposta inflamatória devastadora. Para evitar esse ciclo, pesquisadores estão estudando maneiras de bloquear a ativação microglial, especialmente em pacientes vulneráveis.

Micróglias e novas abordagens terapêuticas
Embora ainda estejamos nos estágios iniciais do entendimento completo sobre as micróglias, suas implicações clínicas são vastas. Novos medicamentos estão sendo testados para aumentar a capacidade das micróglias de combater o Alzheimer. Um tratamento promissor é o transplante de micróglias saudáveis para substituir aquelas que se tornaram “rebeldes”. Essa técnica, chamada substituição microglial, envolve o enxerto de micróglias normais no cérebro por meio de transplantes de medula óssea. Embora essa abordagem ainda seja experimental e complexa, oferece esperança para condições como o vício e o Alzheimer.

O maior desafio reside no equilíbrio delicado que deve ser alcançado: as micróglias precisam ser ativas o suficiente para proteger o cérebro, mas não podem se tornar hiperativas a ponto de causar danos. Linda Watkins sugere que tratamentos menos invasivos, como a modulação seletiva da micróglia em áreas específicas do cérebro, podem ser uma alternativa promissora.

Com o avanço dos estudos, espera-se que as micróglias possam ser manipuladas de forma a combater doenças sem causar efeitos colaterais graves. Se bem controladas, essas células têm o potencial de revolucionar a medicina neurológica.