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A crise dos medicamentos genéricos na China: saúde em risco?

Nas últimas semanas, uma onda de insatisfação pública tomou conta da China, impulsionada por relatos de médicos preocupados com a crescente ineficácia de medicamentos genéricos usados em hospitais públicos. A controvérsia atingiu tal magnitude que forçou uma resposta direta do governo — uma atitude incomum, dada a sensibilidade de temas relacionados à saúde pública no país.

Esse episódio trouxe à tona uma questão crucial: até que ponto a busca por eficiência econômica pode comprometer a segurança e a confiança no sistema de saúde? Em um cenário onde medicamentos genéricos dominam o mercado hospitalar, pacientes e médicos começam a questionar se a economia gerada compensa os riscos envolvidos.

O sistema de aquisição de medicamentos: como funciona e por que está em crise?

O sistema de aquisição centralizada de medicamentos foi implementado em 2018 com o objetivo de reduzir os gastos do Estado. Nele, governos locais promovem licitações para suprir cerca de 70% da demanda anual de medicamentos dos hospitais públicos. Empresas competem oferecendo os preços mais baixos, com uma clara vantagem para fabricantes de genéricos domésticos.

Os medicamentos genéricos, que possuem os mesmos princípios ativos dos medicamentos de marca, são, em teoria, equivalentes e muito mais baratos. No entanto, o processo de aquisição levou a uma drástica redução de preços, com alguns contratos vencidos por valores simbólicos — como um comprimido de aspirina oferecido por menos de um centavo.

Esse cenário levanta uma pergunta inquietante: é possível garantir qualidade com preços tão baixos? Muitos médicos argumentam que o custo reduzido pode levar empresas menos éticas a cortar gastos em ingredientes e processos de fabricação, resultando em medicamentos de eficácia questionável.

A polêmica ganha força: as vozes que alimentaram o debate

A crise ganhou projeção nacional em janeiro, após o diretor hospitalar Zheng Minhua expor suas preocupações em uma entrevista que rapidamente viralizou. Ele relatou casos alarmantes, como antibióticos ineficazes, anestésicos que falhavam e laxantes que não produziam o efeito esperado. Suas palavras ecoaram entre milhões de usuários nas redes sociais chinesas, transformando-se em um slogan amplamente compartilhado.

Pacientes relataram experiências semelhantes. Um usuário do Weibo, rede social popular na China, descreveu como precisou dobrar a dose de um laxante genérico antes de recorrer a métodos alternativos para preparar-se para uma cirurgia intestinal. Outras pessoas relataram a substituição de medicamentos genéricos por versões importadas adquiridas online, movidas pela desconfiança na qualidade das drogas oferecidas nos hospitais.

A resposta do governo: percepção ou realidade?

Em resposta, autoridades chinesas classificaram as preocupações como uma questão de percepção pública, baseada em relatos subjetivos e anedóticos, em vez de evidências concretas. Um relatório oficial argumentou que diferentes pessoas podem reagir de forma distinta aos mesmos medicamentos, mas a declaração fez pouco para acalmar os temores.

A Administração Nacional de Produtos Médicos admitiu erros em alguns testes de equivalência entre genéricos e seus correspondentes de marca, mas atribuiu os problemas a falhas editoriais. Embora reconhecendo a necessidade de melhorias, o governo reafirmou sua confiança no sistema de aquisição centralizada.

Dados fraudulentos e medicamentos falsificados: a ponta do iceberg

O debate também trouxe à tona uma questão delicada: a confiabilidade dos ensaios clínicos realizados para aprovação dos medicamentos genéricos. O médico Xia Zhimin, de Hangzhou, publicou um artigo destacando como dados de ensaios de alguns medicamentos eram idênticos aos do medicamento original, sugerindo possível fraude. Embora as autoridades tenham desmentido a acusação, o episódio intensificou a desconfiança pública.

Além disso, a presença de medicamentos falsificados nos mercados global e doméstico agrava a situação. A Organização Mundial da Saúde classifica essa questão como um problema de saúde pública mundial, especialmente em países com mercados amplamente dominados por genéricos.

Um sistema de saúde sob pressão

A crise dos medicamentos genéricos ocorre em um momento crítico para o sistema de saúde chinês. Com uma população em rápido envelhecimento, o gasto total com saúde disparou nas últimas décadas, atingindo 9 trilhões de yuans (US$ 1,25 trilhão) em 2023. Paralelamente, os fundos públicos de seguro médico enfrentam déficits, enquanto uma crise no setor imobiliário reduz as receitas locais, dificultando ainda mais o financiamento da saúde pública.

Os ataques violentos a profissionais de saúde também se tornaram mais frequentes, alimentados por uma combinação de frustração pública e perda de confiança nas instituições médicas. Nesse contexto, a crise dos medicamentos genéricos pode ser vista não apenas como um problema isolado, mas como um sintoma de uma crise mais profunda.

O que está em jogo: segurança versus economia

O sistema de aquisição foi projetado para ser um modelo de economia e eficiência, mas o escrutínio atual questiona se seus benefícios superam os riscos. Especialistas sugerem que melhorias são necessárias, incluindo reforço no controle de qualidade, maior transparência nos processos de avaliação e uma melhor comunicação entre médicos, autoridades e pacientes.

A China tem a oportunidade de liderar pelo exemplo e redefinir como medicamentos genéricos podem ser integrados de maneira segura e sustentável a sistemas de saúde públicos. No entanto, como apontou um usuário do Weibo, “a economia gerada pelos medicamentos mais baratos é apenas uma gota no oceano dos gastos com saúde”. Em contrapartida, permitir que medicamentos de baixa qualidade entrem no sistema pode ser como “beber veneno para saciar a sede”.


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